sexta-feira, abril 28, 2006

Era uma vez, uma árvore

Quando comprei meu apartamento uma das coisas que mais me chamou a atenção foi a vista, justamente da janela do meu quarto (a mesma das janelas da cozinha, os dois ambientes mais agradáveis de qualquer apartamento, digamos de passagem): uma enorme árvore.
Sei lá se era uma mangueira, uma seringueira, um baobá, sei lá, não fazia a menor importância. O que importava era que ela estava lá e era, literalmente enorme.
Ficava cravada no meio de uma serralheria artesanal que não causava barulho algum. Na verdade o que causava barulho era a árvore.
Qualquer vento, nem precisava ser um furacão, bastava uma brisa mais densa, mexia suas milhares de centenas de folhas e provocava um barulhinho agradável, relaxante até. Quantas vezes até confundi com chuva e quando abri a janela era simplesmente o farfalhar da árvore. Fantástico.
Outro detalhe extremamente positivo é que tem um colégio bem próximo ao apartamento. Mês sim, mês não tem um evento de sábado - dia inteiro - no colégio com rock e sabem o que dava para ouvir? Absolutamente nada, a árvore funcionava como um escudo acústico.
Querem mais? Pois tem. Imaginem, de leve, sem se esforçar muito, a quantidade de passarinhos que freqüentava a árvore. Tinha um pouco de tudo, mas especialmente um Bem-te-vi que devia ter aprendido a cantar com o Pavarotti. Coisa de acordar a gente pela manhã, inacreditável - afora que pontualíssimo: 6h45, nem um minuto a mais, nem a menos.
Daí, um belo dia, há algumas semanas, em uma daquelas tempestades monstruosas que assolaram São Paulo no mês de março, dois dos galhos da árvore não agüentaram o peso e cederam. Parecia que estava caindo o mundo, barulho de madeira rachando, caindo no teto de metal da serralheria, coisa quebrando, enfim, o caos. E, para ajudar, tudo de noite, o susto foi tremendo.
Dia seguinte, pela manhã, a visão da janela era, se olhado reto, a árvore, meio mais magrela pela falta de dois galhos, se olhado para baixo, a destruição total da pobre da serralheria.
Homens correndo para lá, bombeiros para cá (felizmente não machucou ninguém, foi de noite né), na mesma tarde começo a ouvir o barulho de uma serra elétrica. Estavam tirando a árvore.
Dei uma reclamada, mas os bombeiros (e até que me provem o contrário, nesses dá para confiar) alegaram que a base da árvore estava rachada, comprometida e não tinha como, se não cortassem ela iria acabar de cair, causando mais destruição, colocando em risco até o muro do prédio e algumas casas.
Quinze dias depois acabaram de tirar os galhos da árvore. Deixaram um toco grosso que devem tirar mais para frente.
A serralheria fechou as portas, prejuízo total.
Agora olho da minha janela do quarto e vejo algumas coisas. Vejo o teto de uma pequena empresa reconstruído de forma amadora e imagino alguns serralheiros desempregados.
Vejo uma escola que sei que qualquer sábado desses vai fazer um show de rock e me incomodar pra valer.
Vejo um toco do que um dia foi uma vida.
E tem algumas coisas que não ouço.
Não ouço o farfalhar do vento.
Não ouço mais o Bem-te-vi.
Não ouço mais o sopro da vida do que um dia foi uma grande árvore.
Como a nossa vida, o dia a dia da nossa vida, faz com que a gente não preste muita atenção nas pequenas coisas que acontecem ao nosso redor, nunca havia reparado na força daquela árvore que não existe mais.
Também não havia reparado quando a cortaram. Mas reparei hoje de manhã, quando abri a janela e vi, daquele toco feio, maltratado, judiado, mas com toda certeza ainda forte, um ramo de verde dizendo que sabe que não vai vingar, que vão mais cedo o mais tarde cortá-lo, mas que ele está ali, que não desistiu e que não vai desistir, que é para eu me lembrar dele e da árvore que um dia ele foi, dele e do barulhinho das folhas que um dia ele proporcionou, dele e do canto do bem-te-vi que um dia pousou em seus galhos e cantou, que a contra a força da natureza nada pode ser feito, seja ela usada para derrubar os galhos de uma grande árvore, seja para fazer renascer um pequeno ramo verde, brilhante ao sol e que quando for arrancado de lá, vai permanecer imortal nas palavras desta crônica.