sexta-feira, março 03, 2006

No supermercado 1

Eu absolutamente concordo com vocês: o errado sou eu. Quem é que mandou, depois de tudo, voltar a fazer supermercado com a esposa?Sabe como é, feriadão, cidade vazia, supermercado sem filas, a gente sem pressa, sem stress, quem é que poderia imaginar que algo pudesse dar errado?E eu, que pensei que conhecia absolutamente tudo do comportamento feminino em um supermercado, acabei descobrindo que sou um completo ignorante no assunto e que, decididamente, definitivamente, para sempre, não dá para entender como é que elas conseguem.O mais novo impropério supermercadístico é o colóquio com os produtos. Isso mesmo, a criatura mantém, com alguma emoção, uma conversa com a lata de ervilha, uma prosa com vidro de mostarda, bate um papo com o saco de lentilha. Mas permitam que conte a história do começo.Logo que chegamos no mercado ela vai avisando: "olha, dessa vez não vou sair do regime. Você me ajuda?"Primeiro, penso, o que seria ajudar a não sair do regime? Mas, asseguro-lhes que a pergunta fica no pensamento. Claro pq se ousar verbalizá-la corro o risco de escutar durante as próximas cinco horas: tá vendo, você não ajuda mesmo, num posso contar com você pra nada... Melhor ficar quieto.Entramos.As primeiras prateleiras (sim, meu amigo, eu sei que não são prateleiras, são gôndolas, mas hoje quarta-feira de cinzas, dá um desconto, vai.... pode ser? obrigado) até que são suplantadas com alguma lepidez, o que me deu uma esperança que seria possível percorrer toda a extensão do local ainda nesse semestre.Mas, vã e fria esperança, chegamos na área de alimentos e aí, justamente aí foi que iniciou-se uma nova fase em minha vida: a fase de fiscal de composição nutricional de alimentos e afins.Como sempre, passei no corredor das latarias e fui colocando para dentro do carrinho o que me interessava e o que precisava, ou melhor, tentava colocar, pois bastava esticar o braço para alcançar alguma latinha que vinha aquele ser, linda, maravilhosa, com quem decidi passar o resto dos meus dias e começava a ler a embalagem.Mas o pior, ela não lia a embalagem para mim ou para qualquer outro ser humano do estabelecimento: ela lia a embalagem, para a própria embalagem.- Não acredito, olha a quantidade de carboidratos que você tem... Deixa eu ver essa outra aqui... nossa... tem ainda mais... vocês não tem vergonha, como é que vou manter meu regime dessa forma. Nada feito, volta agora para a prateleira. Vamos amor.Bem, pelo menos o amor foi para mim...Nas primeiras vezes achei que fosse brincadeira. Em outras que era pegadinha, impossível, tinha que ter câmeras escondidas. Mas depois de 48 minutos e o carrinho ainda semi vazio graças às descrições nas embalagens comecei a acreditar que o negócio era sério.Tão sério a ponto de começar a me preocupar com o jantar daquela noite. Claro, pelo andar da carruagem quem ia ficar de regime era eu (não que não estivesse precisando, mas quem iria decidir seria eu e não o rótulo de uma lata de atum).O mais engraçado é que ela tratava todos os produtos com absoluta intimidade. Aos mais calóricos ou com maior quantidade de carboidratos era dirigida uma bronca que beirava à descompostura. Cheguei mesmo a ouvir um: será que você não tem vergonha, que adianta... sei que você é gostoso, mas não adianta, com tudo isso de calorias, sinto muito, não dá pra te levar.Imaginei o produto clamando pela atenção, tentando se explicar, contra-argumentando a quantidade de prolipídeos e asterlopídeos, implorando: me leva e me come só um pouquinho, vai...Que baixaria!Já aos produtos ditos saudáveis ela só faltava acariciar. Faltava? Que nada, não é que a bandida fez um carinho, algo sensual no pacote de gelatina diet sabor tangerina antes de colocá-lo no carrinho com um sorriso que só vi naquelas noites mais calientes? Não minha senhor, não cheguei a ter ciúmes da gelatina, pelo menos não da de sabor tangerina, talvez um pouco da de frutas vermelhas.. sei lá, acho que foi a cor...
continua....