quinta-feira, maio 25, 2006

Reforma 3


Daí, um belo dia, nem lembro se terça à tarde, quinta à noite ou domingo de manhã, ouço uma voz dizer.
- Bem, seu Isderbardo, brigadú por tudo, discurpa quarqué côsa. Inté mais.
Era o fim, o the end, o finito. Admito, não era fácil aceitar. Tal qual uma despedida, um adeus, parecia que aquele ser já fazia parte da família. Mas, se era o fim..... o que fazer... resignai-te ó coração, reuni os cacos e ergue-te do amontoado para refazer tua história....
ÊÊÊÊÊÊÊÊbaaaaaaaaaaaaaaa. Acabou, a reforma finalmente havia terminado. Meses após, nem sei quantos, nem sei quantas noites dormindo em colchões estirados no chão, em cômodos diferentes de uma casa que já havia sido minha e que a partir daquele instante voltava ao meu controle.
Claro, tudo estava melhor, mais bonito. Sem dúvida - jamais iriam me obrigar a expressar em voz alta - mas minha mulher tinha sido extremamente competente e feliz em todas as escolhas. Tinha sido porreta agüentando aquele bando, aquela turba de pintores, marceneiros, eletricistas e sei lá mais que tipos estranhos - claro, nada contra pintores, marceneiros e eletricistas, em verdade admiro muito esses trabalhos pois admito minha total incompetência em atarraxar uma torneira, em serrar um cabo de vassoura, em parafusar um quadro, em trocar uma lâmpada, mas... será que precisavam estar todos juntos, em convenção, no meu apartamento?
Mas estava tudo arrumado. Tudo em ordem. Parede nova, quadro novo. Quarto novo, cama nova, armário novo. Banheiro novo, chuveiro novo, privada nova. Cozinha nova. Tudo novo e eu poderia aproveitar todas aquelas novidades... finalmente, voltaria a ser feliz.
O dito cujo, ou melhor, o último dos ditos cujos, saiu e eu pude me deitar no sofá e respirar fundo. Estava finalmente...
- Asderbaldo, o que é isso?
- O que? Isso o que?
- Dá para tirar esses pezões do sofá novo!
- Que pezão? Mas eu sempre deitei no sofá para descansar...
- Deitava, doutor Asderbaldo, deitava. Nem vem que não tem. A partir de agora é vida nova na nova casa. O senhor não vai de forma alguma manchar o sofá.. vai, vai, vai... vai levantando e sentando direitinho.
Preferi levantar. Na verdade estava com sede. Acho que a emoção do final da reforma havia me desidratado. Fui até a cozinha.
- Benhê?
- Fala Asderbaldo?
- Você sabe aonde está o meu copo? Aquele que gosto de tomar água...
- Sei. No lixo.
- Como?
- Aquela coisa era horrível não combinava com a cor do armário.
- Mas o armário é branco e o copo tinha detalhes em branco.... como é que não combina? E o que é que tem a ver o meu copo combinar com o armário?
- Olha Asderbaldo. Vamos começar vida nova. Aquele copo, ou melhor, aquela monstruosidade em vidro já era, foi-se... Toma... agora teu copo de uso diário é esse.
- Esse cálice?
- Asderbaldo...
- Mas eu tomo água muitas vezes por dia e com essa tigelinha...
- As-der-bal-do.
Desisti. Melhor ir lavar o rosto... relaxar.
- Dá para o senhor tirar esse mãozão imundo da parede branquinha.
- Que?
- A mão Asderbaldo. Parece criança. Precisa encostar a mão em tudo que é parede?
- ....
- Môr.
- Fala Asderbaldo.
- Que gosma é essa que está na pia do banheiro?
- Mas o senhor não entende nada mesmo de modernidade. Esse é o novo sabonete líquido artesanal da Imaculada. Erva cidreira, amêndoa doce, polvilho e nutrientes essenciais para a pele.
- Quem é a Imaculada?
- A filha da Tia Norma, esqueceu?
- E desde quando aquela encalhada entende alguma coisa de sabonete?
- Pois saiba que ela fez um curso completo e avançadíssimo nessa área. Foi até matéria de jornal.
- Ela?
- Não o instrutor do curso, um oriental famosíssimo.
- Só se for na terra dele.
- Que foi que disse?
- Nada. Xá prá lá.
Cansaço, tudo puro cansaço. Sabe quando você está muito cansado e dá uma relaxada. Parece que vai desabar. O melhor é dormir e pela primeira vez ia poder dormir sem medo de ser acordado com um eletricista pendurado no lustre, um encanador batendo no banheiro, um marceneiro lustrando armário na minha cabeça, um técnico de tv a cabo pedindo licença para passar cabo por trás da cama.
- Sabe de uma coisa querida? O quarto ficou muito bonito. Olha, vou ter que admitir. Você se superou.
- Ai, que lindo.... Posso aproveitar que você está romantiquinho...
- Claro.... gatona!
- Para, não é nada disso.
- Hummm
- Sabe...
- Que?
- Andei pensando.... e...
- Vai direto, amor. Fala logo.
- Tá bom. As crianças estão crescendo. Logo, logo vão ter namoradinhos, amiguinhos...
- Sei...
- O que você acha da gente mudar para um apartamento maior?
Toca o interfone. Minha filha do meio atende.
- Alô.
- Olha, desculpa incomodar - diz o envergonhado zelador - Mas é que já três pessoas reclamaram que tem um barulho esquisito vindo do seu apartamento.
- Ah, não é nada não. Fala que é meu pai que consegui, não sei como, entrar embaixo da cama. Minha mãe tá falando para ele sair de lá, mas ele tá dizendo umas coisas esquisitas sobre ter jogado pedra na cruz, matado beija-flor quando criança, um tal de carma, que tá pagando pecados de todas as vidas anteriores... mas, se conheço bem ele, logo logo passa. Assim que a mamãe mostrar para ele quem é que manda na casa.
- Tá bom. Ah, e tua vó tá subindo.