terça-feira, maio 16, 2006

Valeu João

Uma cena hoje me chamou a atenção. Uma cena que absolutamente ninguém viu, mas que me foi contada e, na imaginação do cronista, na veia do jornalista, no coração do amigo, se fez real.
Depois de quatro dias sem ir para casa, João finalmente pode abrir a porta de sua casa. Não foi uma tarefa fácil... na verdade, ele até respirou fundo enquanto virava a chave na fechadura - parecia não acreditar que estava ali.
João, nome normal, comum, banal até, é policial, escolheu por opção própria prestar serviço para que ele, sua mulher, sua filha, seus amigos, todos enfim, pudessem ir do trabalho para casa sem preocupação e, por quatro dias, ele foi privado desse direito.
Privado na verdade não, impedido talvez seja um termo melhor. Ou talvez ainda não: mais uma vez, não ir para casa, foi opção do João.
Não pq ele não quisesse ir... muito, muito pelo contrário. Mas sim pq ele, em segundo lugar tinha um dever, em terceiro tinha colegas a ajudar e, em primeiro lugar, teve medo de que sua casa, com ele dentro não fosse um lugar seguro para sua família.
Durante quatro dias João tirou a filha da cabeça e colocou a obrigação. Uma obrigação que falou mais alto que tudo. E onde ficaram sua mulher e sua filha nesse tempo? Esquecidas? De forma alguma, nunca, jamais. Cada passo, cada ação, cada ato era por elas, para elas, pelo futuro delas. Elas estavam em seu coração, em sua alma, no ar de seus pulmões ofegantes, no sangue de suas veias, no suor de seu rosto cansado, nas bolhas de seus pés apertados pelas botas, nos calos de suas mãos, nas cicatrizes de sua tristeza, na esperança de sua coragem, na estrela de sua sorte, na luz de seus olhos - em cada pedaço, elas e todos nós, estavam lá.
Era meio que noite quando João foi finalmente para casa, quando João pôde ir para casa. No caminho, ainda meio elétrico, até pensou em ligar avisando que estava chegando, mas achou melhor deixar para lá.
Estacionou o carro, desceu, olhou para um lado, para outro, estava tudo bem. Colocou a chave na fechadura e ficou pensando no que ele ia dizer para suas mulheres. Chegou mesmo a sorrir: ia com certeza levar uma baita bronca por não ter ligado, por não ter avisado, por... nem ele sabia pq, mas estava com uma baita saudade das broncas apaixonadas de sua companheira.
Entrou, deixou suas coisas na estante da sala, com o cuidado de sempre; um sempre que ele pensou não ter mais, um sempre que não acontecia há uma eternidade... que bom era poder voltar a fazer o que sempre fez.
Caminhou até o quarto e na cama, sua mulher, com a filha deitada ao lado, assistia a um filme qualquer. A pequena dormia pesado e sua mulher, que coisa, de tão ansiosa, tinha optado por prestar atenção ao filme e nem tinha ouvido ele entrar. Era o que ele pensava...
Quando esboçou um passo dentro do quarto, ela falou:
- Pega um copo de água pra mim, João?
Ele não acreditava, depois de quatro dias, tudo o que ela tinha para dizer, meio que sem olhar, era pedir um copo de água? Mas tudo bem, se era isso que ela queria e foi até a cozinha e trouxe o copo.
No quarto ela pegou o copo, bebeu metade, colocou o copo no criado mudo, levantou-se, pegou a filha e a levou, no colo, para a cama dela.
Ele até tentou, mas ela não deixou que ele a acordasse. "Shi, não acorda ela, deixa ela descansar".
Ela voltou, ele estava sentado na cama.
Ela pegou o copo com a água que havia deixado e deu para ele.
- Agora bebe você e acredita que eu estou aqui para repartir absolutamente tudo com você, para sempre.
Naquela água estava todo seu amor, seu companheirismo, sua parceria e todo o nosso agradecimento pelo João existir e estar do nosso lado.
Ela, ele e nós, sabíamos que no dia seguinte ele novamente teria que sair, que ir fazer valer a sua opção de vida.

A todos os policiais, independente da corporação, da patente, de qualquer ordem, que optaram por ser policiais e honram a cada dia esse serviço. Que tenham sempre a metade de um copo de água para beber ao chegar em suas casas, uma água abençoada pelas suas famílias, seus amigos e todos nós.