quarta-feira, junho 28, 2006

Passado fantástico

Recebi hoje uma daquelas insuportáveis apresentações que mandam, como corrente, falando da felicidade, da paz, da importância do sorriso, da vantagem da asa da borboleta dourada da Tasmânia.... ô coisa chata.
Pior é que, se por algum motivo qualquer, você clicar sobre o arquivo e ele abrir, esquece, vai travar tudo pq só de imagem e som tem um caminhão de megabites.
Contudo, a mensagem que recebi hoje era de um amigo que tem a mesma raiva desse material que eu. E mesmo assim, mandou? Bem, no mínimo devia ser algo interessante.
E era.
Era um power-point vagabundinho, sem grandes efeitos, recursos, sons. Apenas as frases e umas ilustrações de arquivo básica e começava com uma pergunta: você que teve sua infância durante os anos 60, 70, 80? Como pôde sobreviver?
A partir daí, enumerava uma série de coisas que existiam..... ou que não existiam e, apenas por obra divina, ainda estamos aqui para verificar.
Alguns exemplos:
- os carros não tinham cintos de segurança, apoios de cabeça, nem air-bag
claro que tudo isso é item de segurança e é bom que hoje exista, mas já vi madame deixar de comprar carro pq não tinha air-bag lateral com enchimento automático por controle remoto...
-as crianças - nós no caso - iam soltas no banco de trás fazendo a maior farra
sabe, a gente fazia uma farra mais organizada, mais responsável e se o pai da gente mandava ficar quieto, a gente ficava.
- as camas de grades e os brinquedos eram multicores e no mínimo pintados com umas tintas duvidosas contendo chumbo ou outro veneno qualquer
lembro que uma grade da cama da minha irmã era pintada de um vermelho que eu insistia em descascar e lascas da tinta entravam debaixo da unha... doía pra caramba... mas não mais do que a chinelada da minha vó pelo buraco que fiz do meu quarto para a parede da sala.
- não havia travas de segurança nas portas dos carros, correntes, medicamentos ou outros detergentes químicos domésticos
minha vó lavava tudo com água sanitária e eu nunca quis tomar aquilo. Daí inventaram um monte de amaciantes, detergentes e outras coisas com cheiro de rosas, de chiclete, de pastel de palmito e ficam preocupados que as crianças de hoje vão querer beber aquilo (alguém lembra do cheiro do Ajax? era fungar e cair duro! não lembro de ninguém que tivesse bebido aquilo)
- a gente andava de bicicleta para lá e para cá, sem capacete
e fazia disputa do maior ralado de joelho.... ganhei um monte - também, meu joelho era maior...
- bebíamos água da torneira ou de uma mangueira ou de uma bica e não águas minerais em garrafas esterilizadas
sobre água sou suspeito para falar... mas quando foi a última vez que você lavou a caixa d'água da sua casa?
- construíamos aqueles famosos carrinhos de rolimã e aqueles que tinham a sorte de morar perto de uma ladeira asfaltada, podiam tentar bater records de velocidade e até verificar no meio do caminho que tinham economizado a sola dos sapatos, que eram usados como freios.
eu era o juiz das corridas... sempre fui muito grande para andar de carrinho de rolimã.... buá...
- íamos brincar na rua
quando chegar em casa, conte para seu filho o que é uma rua... caso lembre de como era uma.
- não havia celulares e nossos pais não sabiam onde estávamos.
ou melhor, a gente pensava que eles não sabiam. Eles sempre souberam de tudo. Hoje, a gente é que é besta e não sabe se o filho foi na esquina se não der um celular para ele.
- tínhamos aulas só de manhã e íamos almoçar em casa.
e hoje precisam colocar mais um ano ou dois no calendário letivo, com aulas integrais para ensinar tudo o que aprendemos, da mesma forma. Tiradentes continua morrendo enforcado em 21 de abril, o mesmo Cabral descobriu o Brasil no dia seguinte e tudo igualzinho.
- gessos, dentes partidos, joelhos ralados e ninguém se queixava disso
queixar? era orgulho.
- comíamos doces à vontade, pão com manteiga, bebidas com açúcar e não se falava de obesidade
mas, peralá.. doce na minha época era doce, não isopor.
- éramos super ativos
hoje criança ativa é problemática, vai para o psicólogo
- dividíamos com nossos amigos um suco comprado naquela vendinha da esquina, gole a gole e nunca ninguém morreu por isso
morria era se não dividisse... morria moído de porrada do resto da turma.
- nada de vídeo-game, satélites, videocassete, dolby surround, computador no quarto, internet, só amigos.
amigos, bem entendido, que a gente via pessoalmente.. não virtuais, por uma webcam.
- tínhamos cachorros em casa e esses comiam a mesma comida que nós, nada de ração e sem problema algum.
hoje, o comercial da ração dá mais fome que o do sanduíche... qualquer dia tomo coragem e experimento.
- e, ainda para o cachorro nada de banho quente ou xampú, banho era no quintal, um segurava e o outro com a mangueira (fria) ia jogando água e esfregando-o com sabão em lavar roupa e o cachorro não morreu por causa disso
os meus, para falar a verdade, até gostavam da hora do banho. Um momento em que eu aproveitava e lavava o quintal todo da casa do meu avô.
- a pé ou de bicicleta, íamos à casa dos nossos amigos, mesmo que morassem a kms de nossa casa, entrávamos sem bater e íamos brincar.
ah, claro, a bicicleta era nossa, não alugada na entrada do parque.
– na escola tinha bons e maus alunos. Uns passavam e outros eram reprovados. Ninguém ia por isso a um psicólogo ou psicoterapeuta. Não havia a superdotados, nem se falava em dislexia, problemas de concentração, hiperatividade. Quem não passava simplesmente repetia de ano e tentava de novo no ano seguinte
hoje, creiam, tem escola em que é proibido repetir o aluno.... sem comentário... traumatiza o asninh....o infante.
- tínhamos liberdade, fracassos, sucessos, deveres e aprendíamos a lidar com cada um deles
hoje tem cuidados, cobrança pela superação, suicídio pelo insucesso e direitos, sem sabermos lidar com nada disso.

Isso e muito mais, terminando com a questão: como a gente conseguiu sobreviver? como conseguimos desenvolver a nossa personalidade?
Não tenho resposta. Tenho são dúvidas de que, se posso hoje dar uma vida mais confortável, com menos privações para meus filhos, eles tem que saber que vale a pena viver e aproveitar cada momento.
Daqui há 20, 30 anos, essas mesmas coisas de hoje, vão ser passado e daí irão perguntar. Como é que você não voavam, não se teleportavam, não iam passar as férias na terceira lua de Saturno, não tinha jaqueta controladora do tempo... vocês não eram felizes, não viviam, não sabiam o que era viver.

Foi como disseram em um filme outro dia: o presente é somente um buraco no futuro, pelo qual escorre o passado.
Fantástico.