sexta-feira, junho 02, 2006

Viver em condomínio - 3


e fechando...

Não, por mais que eu insistisse, implorasse até, meu chefe não liberou outra tarde. Ou seja, não ia dar para terminar os retoques finas da obra - afinal de contas, o inteligentíssimo regimento interno do meu condomínio diz que se não houver alguém acompanhando, os trabalhadores não podem entrar, lembram?
Já estava à beira de um ato tresloucado, quando minha mulher me liga.
- Oi amor? Tudo bem?
- Médio, né. Pensei que ia poder acompanhar os caras lá em casa hoje, mas não teve como... o carrasco aqui não liberou e..
- Ah, mas nem precisa. Eles já estão lá.
- Como, estão lá? Não deixam entrar sem acompanhante... era o que faltava... agora ainda vou ter pagar a diária deles.
- Dã... você que eu sou o que?
- (sussuro) Qualquer dia eu falo.
- Que foi?
- Nada amor.... fala.
- Tá. Eles estão lá em casa e, até onde sei, está tudo indo às mil maravilhas.
- Mas como, sozinhos?
- Asderbaldo, eles estão com a mais rigorosa das atenções. Mamãe tá lá com eles.

Tinha uma música, se não bem me engano entoada por Dalva de Oliveira, que começava exatamente como o sentimento que me tomou o corpo:"Meu mundo caiiiiiiiiiiiu"
Juro, passei o resto do dia meio sem condições de fazer absolutamente nada. Sabe quando alguma coisa te diz que.... é, que exatamente isso.
Mas, seja como for, tive que esperar o final do expediente para ir para casa - se é que ainda ia ter casa, uma opção que, àquela hora, me parecia até meio lógica, sensata, não de todo negativa.
Entro na garagem e decido subir as escadas até a portaria.

- Bánoiti seu Asdibardo.
- Boa noite, Carmelo. O pessoal da reforma já saiu.
- Já né seu Asdibardo, as essa hora num podi di tê mais óbra nu prédiu.
- É... sei.
- E déru até adeus. Num vão di vortá mais? Cabô as reforma?
- Para ser sincero, Carmelo, nem eu bem sei. Acho que sim.
- Deve di tê cabado. Eles anté mi deru um restinho da lata da tinta verdinha que o sinhô táva usando... vai di dá pra dá uns retoque na frorêra do meu cantinho.
- Tinta verde?
- É... e óia que sobrô uma boa meia lata. Pena que da laranja num sobrô nada né?
- Tinta laranja?
- Olha Carmelo, eu vou subir... boa noite.
- Bánoite seu Asdibardo.... e óia, brigadu também da mesinha... posso tirá ela manhã cedu, né?
- Mesin.... tá Carmelo... po.. pode.... eu... pode.

Incrível como, vez por outra a mente da gente parece estar completamente vazia, sem pensamento nenhum, não é mesmo? Pois é exatamente assim que eu estava no curto, porém interminável caminho que o elevador levou para chegar do térreo ao meu andar.
Abri a porta do apartamento já com o coração apertado e os olhos marejados... puro medo e ouvi a voz calma, suave de minha esposa dando a pior das notícias que um homem pode ouvir, praticamente uma sentença de morte, quiçá um meteoro tivesse caído no planeta... pior não seria do que ouvir:

- Ah, mamãe, ficou lindo!

Efetivamente não vou morrer do coração... se tivesse qualquer problema seria aquela hora que iria cair por terra. Absolutamente nenhum homem está preparado, física, mental ou espiritualmente para, depois de meses de reforma, ouvir aquilo.
Entrei meio que devagar. A sala até que estava em ordem. Tirando alguma bagunça natural, nenhum despautério, nenhum pecado mortal.

- Querido é você?

Ai meu Deus. A voz vinha do meu quarto. Ou seja, a tragédia ocorrera lá.

- Vem ver que maravilha a mamãe fez aqui.

..... e havia sangue.... se não havia, ia ter.
Respirei fundo e fui pelo corredor até o quarto que um dia havia sido meu... que outrora dormira este homem e quando passei o batente da porta, absolutamente com o corpo cheio de coragem e a alma preparada para o terror, vi que ele estava.....
(juro gente, deu uma vontadinha de parar a crônica aqui e só retomar na segunda,..... mas não sou assim tão sacana... perdão, precisava contar)
... ele estava absolutamente perfeito. As paredes da cor que eu queria, os móveis nos lugares certos, enfim: tudo certo - tirando claro uma colcha de extremo mal gosto, daquelas de retalhos de almofadas velhas, misturando tecido florido com liso, com estampado, tudo muito feio, sobre a cama.

- Mas, o quarto está pronto, mesmo!
- Prontinho, amor, não ficou lindo.
- É esta!
- E olha que coisa mais linda a colcha que a mamãe fez de presente para nós... presente pelo fim da reforma. Não é um show?

Nessa hora lembrei de um showzinh que vi quando criança, como é que se chamava mesmo.... Ah, lembrei: Monga, a mulher gorila. Para uma criança de 7 anos, a diaba da mulher vestida com a roupa de gorila causava tanto pavor como aquela colcha.

- É... um show.
- Num acredito, inútil, você gostou.
- A senhora quer mesmo saber a verdade?
- Quero. Fala que eu quero ver...
- Parem vocês dois. O apartamento está pronto, o lindinho gostou da colcha e vamos para a sala.

No caminho passei pelos outros cômodos. Banheiro? OK. Quartos das crianças? OK. Cozinha? OK. Área de serviço? OK. Gente.... estava tudo certo.
Nunca iriam me fazer admitir publicamente, mas a minha sogra tinha conseguido fazer aquele bando trabalhar e fazer tudo certinho. Ela merecia um presente, um beijo....Menos. Passa! Sai coisa ruim! Vixi, que arrepio....

Passa o tempo, a sogra vai embora e vou deitar.

- Amor, nem acredito que acabou.
- Você não acredita? Imagina eu.
- Agora, uma noite calma, só nós dois e podemos pegar as crianças lá no sítio.
- É mesmo. Mas, tem uma coisa que tá me deixando louco de curiosidade.
- Fala, bem.
- Quando cheguei, o Carmelo, me disse que os moços da reforma tinha deixado para ele um restinho de tinta verde, que tinha acabado a tinta laranja e que tinha uma mesinha, que ele vai pegar amanhã. Você sabe que loucura é essa desse maluco?
- Tinta verde? Laranja? Não tenho idéia.
- E a mesinha?
- Não faço a mínima idéia do que seja.
- Bem, vamos descansar que amanhã ele vem pegar e vemos o que é.

Apenas para constar. Nunca soube que tinta verde era aquela que tinha sobrado. Nunca soube que tinta laranja não tinha sobrado. O Carmelo não foi buscar a mesinha, mas até hoje me agradece por ela, disse ficou uma belezura na casa da vó dele que mora em Juricacupira (ou qualquer coisa parecida com isso, que é o que foi que deu pra entender do que ele disse), uma cidadezinha um pouco prá lá da divisa com..... isso deixo pra outra história.